sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Reminiscências:


Mafalda - Quino. 


Cecília Camargo


Nasci em uma época onde bombas nucleares nos ameaçavam de extinção todo o tempo. Onde para se casar era preciso ser virgem. E pobre daquelas mulheres que ousassem transgredir as regras, eram tratadas como prostitutas, ou até pior.

Era a época de Elvis e dos Beatles, dos carrões com motores potentes, da brilhantina no cabelo. Enquanto aprendia a dar os primeiros passos assisti, sem consciência, a crise dos mísseis e ao golpe militar.

Sem entender direito o que eram contas para pagar, via o “homem da Light” subir na escada e cortar a luz de minha casa, várias vezes. Achava divertido ficar à luz de velas e não entendia as lágrimas amargas de minha mãe, nem o semblante de derrotado de meu pai, assalariado e afastado, “na Caixa”, por uma doença que não sabia qual era.

Água nunca faltou, pois tínhamos um poço muito fundo que sempre nos fornecia água fresca, não necessariamente potável, mas fresca. Transformava pedras e latas em brinquedos, que a imaginação dava formas e ajudava a criar histórias. Começava a sonhar com o futuro, queria ser médica, para curar meu pai.

Ele sempre recebia um amigo que trabalhou com ele na fábrica, seus irmãos e seu pai. Era uma família unida, batalhadora. Seu Hansen o pai, era um velhinho simpático, encadernador, que ensinou alguns segredos de seu ofício para o meu pai. Já estava se aposentando mesmo e meu pai precisava de trabalho, já que ainda estava “na Caixa”.

Eu sempre ficava feliz com essas visitas, pois ganhava carinho e atenção. No colo de um deles lembro-me de ficar fascinada com o relógio automático com pulseira de metal, que para mim era enorme. Mas o que mais me lembro é da dor estampada no rosto enrugado de Seu Hansen ao mostrar para meu pai o cheque que o então Presidente Emílio Garrastazu Médici mandara-lhe como paga pelo assassinato de um de seus filhos, pelo Regime Militar. O jovem Olavo fora preso por distribuir panfletos para uma festa de 1º de Maio. Foi detido, torturado, assassinado e abandonado na beira de um rio. O crime foi tão claro, que o próprio governo assumiu sua autoria. Mas a frase dita por Seu Hansen, sempre ecoou em meus ouvidos: “Olha Domingos, esse é o valor que eles dão para a vida do meu filho”. E as lágrimas que desciam pelo seu rosto, apagaram para sempre o brilho de seus olhos.

A partir daquele dia sempre sentia arrepios ao ver alguém fardado, achava que qualquer pessoa fardada poderia vir e tirar mais alguém que me era importante e nunca mais trazer de volta.

Entrei na escola e era muito boa aluna, falava com orgulho de meu desejo de ser médica, só não percebia a angústia nos olhos de minha mãe. Achava que era só cansaço pelas poucas horas de sono e pelo excesso de trabalho.

Comprávamos com caderneta na venda, para pagar no final do mês. Mas, muitas vezes, voltávamos para trás, com a lista que a mãe mandara buscar, pois o dono da venda se recusava a vender enquanto não acertássemos a conta anterior. De novo as lágrimas mudas corriam pela face de minha mãe e ela usava de toda sua criatividade para que não percebêssemos, eu e meu irmão, o que estava acontecendo realmente. Inventava alguma coisa, uma sopa rala e ficava contando histórias para nos alegrar.

Elvis morreu, chorei muito escondida, os Beatles se separaram, o governo militar começou a se desgastar, me apaixonei pela primeira vez, menstruei pela primeira vez. Quase tudo naquela época era sempre a primeira vez, como ir ao cinema, ou a um restaurante. O dinheiro era muito curto e no máximo comíamos um pastel comprado na pastelaria para levar para casa, embrulhado em papel manilha, aquele cor de rosa, amarrado com barbante, pois não se usava durex.

Aos doze anos era a ingenuidade em forma de pessoa, mas já percebia que meu sonho de ser médica e curar meu pai, não se realizaria. Era pobre, como eram meus pais, como foram meus avós, como foram meus bisavós, numa linhagem de pobres que só conseguiam herdar a miséria e o sofrimento, o sentimento de impotência e a fé de que estávamos assim, porque assim era a vida e assim continuaria a ser por muitas gerações. Tínhamos nascido para servir e assim deveria continuar.

Meus avós paternos eram analfabetos, meus pais estudaram somente até a quarta série, eu fui a que tinha chegado mais longe, afinal aos quatorze anos estava no primeiro colegial, era o orgulho de meus pais. Meu irmão que era mais velho abandonara a escola para trabalhar.
Os Bee Gees estavam no auge do sucesso, mas comecei a ouvir umas músicas estranhas, latino-americanas e ditas subversivas. Gostava dos dois estilos, mas prestava mais atenção ao significado das músicas de Violeta Parra, Ataualpa Yupanqui, Victor Jara. Eles clamavam por liberdade, pelo direito a felicidade e a fazer suas próprias escolhas.

Comecei a questionar aquela crença de que viemos para servir aos poderosos. Participei da formação do primeiro partido de esquerda pós golpe militar. Fui nas passeatas pelas Diretas, mas não tenho nenhuma foto para provar, que pena, amo fotografia, mas na época, não tinha dinheiro para ter uma máquina, ou para revelar filmes.

Embora muito jovem já estava casada e com uma filhinha pequena. Ops! Casei grávida, quanta transgressão! Meu avô materno nunca mais me abraçou como me abraçava antes e meu pai só não me bateu, porque no dia que ficou sabendo da minha gravidez, eu assisti quatro amigos morrerem afogados e quase abortei por conta do trauma. E conforme suas próprias palavras, eu já tinha sido castigada o suficiente com a morte deles. Mas quando a neném chegou todos amoleceram seus corações e deram graças àquela nova vida.

Meu marido sempre esteve envolvido com as lutas sindicais. Também acreditava que poderia dar um futuro melhor à nossa pequena filha, se lutasse por seus direitos. Nessa época não havia celular e sempre deixávamos combinado, que caso ele não voltasse até determinada hora, que eu fosse procurá-lo na delegacia, caso tivesse sido detido. Nunca cheguei a tanto, mas o acompanhei algumas vezes até o Fórum, para saber dos processos que tinha contra ele e em que pé estavam.

Por conta de ser do Sindicato e da Cipa, ele possuía estabilidade, mas abriu mão dela e de outros direitos seus, para auxiliar outros colegas de fábrica, em negociações que os patrões usavam de chantagem para com os mais fracos.

Perdeu empregos, foi perseguido, agredido. Mas sempre permaneceu de cabeça erguida, pois tinha um ideal e acreditava nele. Isso sempre me encheu de orgulho e sempre ensinei minha filha a ter orgulho das atitudes de seu pai, mesmo que isso nos custasse a angústia do desemprego e a insegurança. Era um preço baixo a se pagar pelo resgate da dignidade e de nãos sermos mais servis como nossos antepassados.

As eleições foram uma vitória da democracia contra a ditadura, mas não a vitória do povo, pois no poder continuavam os poderosos, que nunca haviam comprado de caderneta ou tiveram sua luz cortada por não poderem pagar por ela.

Em nossa luta diária conseguimos estruturar melhor nosso partido político, mas passamos muitas madrugadas fazendo nossas próprias camisetas, faixas e panfletos, pois não tínhamos de onde tirar dinheiro para as campanhas.

A polícia ainda nos perseguia, afinal éramos um partido de operários, o que nós pensávamos que estávamos fazendo enfrentando os verdadeiros donos do poder? Tínhamos nosso material apreendido, éramos xingados e até apanhávamos de vez em quando. O que eles não contavam é que nós não desistiríamos, pois queríamos um futuro melhor para nossos filhos.

O que sempre me assustou foi a reação de algumas pessoas que acreditavam e ainda acreditam piamente que deve haver servidos e servidores, que a sociedade deve ser dividida em castas e que estas não devem ser transgredidas.

Agora que todas as músicas que citei são músicas do passado, que o movimento Punk envelheceu, que surgiram novos estilos e, nem tão bons, novos ritmos, olho para trás e vejo o quanto caminhamos.

Na Polônia, um operário chegou ao poder, na África do Sul, um negro acabou com o Aparthaid e ainda tornou-se presidente. Na Islândia, a Primeira Ministra é casada com uma mulher, um negro tornou-se presidente dos Estados Unidos. No Brasil, um metalúrgico nordestino tornou-se o presidente com a maior popularidade que um político já conquistou, pois realmente olhou para os desfavorecidos, o que deixou parte das classes abastadas iradas. E caminhamos com a possibilidade de vermos ainda uma mulher galgando a presidência deste país.

Consegui fazer minha faculdade tardiamente, mas consegui. Minha filha conseguiu terminar sua faculdade antes de completar vinte e um anos. Temos nossas profissões e estamos relativamente tranqüilas. Meu marido está fazendo sua faculdade agora. Sou professora efetiva. Tenho casa, carro e as benesses eletrônicas da vida moderna. Com a idade que estou conquistei muito mais do que meus antepassados jamais sonharam possuir.

Observo meu neto brincar com uma quantidade de brinquedos que antes seria inimaginável para nós. Ele nem sonha com falta de luz, comida escassa, trabalho infantil. Mas mesmo assim ainda o ensinamos a dividir as coisas e de que tudo tem seu preço e um custo moral e ético. Não queremos que ele se torne um dos que querem ser servidos, mas queremos que ele aprenda a manter o que conquistamos, sem esquecer de nossas origens e do preço que essa luta custou. Pois “a vida é tecida de mil mortes” e nossas conquistas também.

Fico feliz e orgulhosa por ter tido o privilégio de assistir a essas mudanças, que antes pareciam impossíveis e de ter feito parte dos movimentos que levaram a isto. Eu não apenas assisti a História, mas eu fiz parte dela e ajudei a construí-la. Eu, filha, mulher, mãe, operária, com todo o poder de fazer e acreditar.