A desconstrução da mulher
Pablo Capistrano
Escritor, professor de filosofia do IFRN.
Uma semana antes do pleito eleitoral do primeiro turno, meu pai, Franklin Capistrano (médico psiquiatra e vereador pelo PSB em Natal), me ligou preocupado com uma onda de boatos contra Dilma que circulavam nas igrejas da capital potiguar. Um senhor o havia interpelado e perguntado: “Doutor, é verdade que Dilma vai fazer uma lei e implantar útero nos homens?”. Quando narrei o acontecido a minha esposa, ela de imediato respondeu: “até que não seria má ideia”.
O fato é que existe uma simbologia negativa do feminino nas tradições monoteístas (judaica, cristã e mulçumana). Lilith (primeira mulher de Adão segundo algumas tradições) teria recusado-se a ficar embaixo do marido na “noite de núpcias cosmológica do paraíso”. Eva (um apêndice da caixa torácica de Adão) por sua vez, teve a fragilidade de se deixar seduzir pela energia sexual da serpente (em uma das leituras possíveis do mito bíblico). Em ambos os casos a feminilidade é vista como algo potencialmente perigoso, especialmente quando envolve sexualidade e papeis sociais.
Talvez seja por isso que o cristianismo tenha aceitado apenas a “Maria” mãe de Deus (Theotokos, eternamente virgem, concebida sem o pecado da energia sexual descontrolada) e negado a influência da outra “Maria”, a Madalena, sobre Jesus (Dan Brown pode explicar melhor isso).
Antes da questão do aborto vir à tona circulou um e-mail que trazia o número de um processo judicial inexistente movido contra Dilma por uma suposta ex-amante que pedia pensão alimentícia. A essa armação somou-se a frase que a candidata do PT teria dito em Minas: “Nem Deus me impede de ganhar essa eleição”.
O que essa boataria conseguiu produzir no início do segundo turno foi descolar o imaginário do eleitor menos esclarecido e pouco afeito as manobras sujas que são utilizadas em tempo de eleição, da realidade sócio-política do país e lançá-lo em um universo simbólico arquetípico, onde visões bizarras de seres sexualmente híbridos uniam-se a uma fobia misógina que beirava a histeria.
Para nós, culturalmente cristãos, só as mães são perdoadas. Só o amor imaculado das mães se justifica na construção da figura feminina. Subitamente, Dilma Rousseff, aquela que tem as maiores chances de vir a ser a primeira mulher eleita presidente no Brasil, representava, no imaginário desse eleitor acossado por fantasmas inconscientes que misturam sexo e morte, o lado obscuro do feminino. A face terrível da mulher.
Não é a toa que parte dos votos resultantes dessa desconstrução migrou para Marina Silva (quase uma freira, cuja imagem foi formada para se encaixar no padrão de santidade mariano que melhor apetece o gosto médio brasileiro).
Repentinamente, Dilma era a favor de “que se matem criancinhas” (negação fundamental da condição de mãe), sexualmente suspeita (o desejo desviante da homossexualidade feminina), sem nenhum traço de submissão a autoridade suprema de um Deus Pai todo poderoso. Uma mulher que segura um rifle, uma terrorista assassina e que não se enquadra no modelo de feminilidade suportada pelos setores mais retrógrados da sociedade brasileira.
A reação da TFP, de grupos monarquistas, integralistas e fundamentalistas foi absorvida pela campanha tucana e usada como uma estratégia de desconstruir a imagem da “mulher Dilma Rousseff”. Esses expedientes já são conhecidos aqui no RN. Tanto a ex-governadora Wilma de Faria quanto a Deputada Federal Fátima Bezerra já sofreram esse tipo de desconstrução. Com frases tipo “Ela não vai dar conta”, “Sem chefe ela não funciona” a campanha tucana aponta sutilmente para a desconfiança de gênero. Uma desconfiança que não tem a ver apenas com o machismo chulo, mas que flerta perigosamente com forças arcaicas, presentes no inconsciente das massas.
O irônico é que, pelo que indicam alguns especialistas em números eleitorais, provavelmente vai vir de uma eleitora (que votou em Marina no primeiro turno e que ainda anda indecisa) o voto de minerva desse segundo turno. Os serristas que me perdoem, mas é a mulher, para o bem o para mal, a grande personagem dessa eleição.
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