http://informecritica.blogspot.com.br/2011/02/grachus-babeuf-e-o-manifesto-dos-iguais.html
[9]Refere-se ao ato constitucional apresentado por Robespierre (NRR).
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Artigo e tradução publicados originalmente em:
Revista Ruptura, Ano 04, num. 06, Dezembro de 1997.
Grachus Babeuf e o Manifesto dos Iguais
DE GRACHUS BABEUF
Nildo Viana
“Não há derrota estéril.
Graças à derrota,
se educam os revolucionários,
e a revolução toma consciência de si mesma”.
Graças à derrota,
se educam os revolucionários,
e a revolução toma consciência de si mesma”.
Daniel Guérin
Grachus
Babeuf nasceu em 1760 e morreu aos 37 anos, quando foi guilhotinado, em
1797. O contexto em que surgiu os escritos e a ação de Babeuf é marcado
pela 9 do Termidor (a reação burguesa durante a revolução francesa) e
pela morte de Robespierre, acontecimentos que produzem um acirramento
das lutas sociais. O Diretório burguês abusava do poder e o surgimento
de movimentos populares e conspirações visando derrrubá-lo formavam o
clima da época em que Babeuf entrou na luta política. Tal como disse
Daniel Guérin, a derrota da revolução educa os revolucionários e este é o
caso de Babeuf. Os seus escritos mais famosos (O Comunismo e a Lei Agrária; Manifesto dos Iguais,
etc.) são breves panfletos revolucionários que, no entanto, já
vislumbravam o caminho que desembocaria na doutrina anarquista e na
teoria marxista.
Babeuf
desenvolveu uma intensa atividade política, sendo que fundou o jornal
Tribuna do Povo (o que lhe valeu a prisão), organizou “O Clube dos
Iguais” (que foi fechado e os seus componentes foram jogados na
clandestinidade) e tais ações desembocam na “Conspiração dos Iguais”
contra o Diretório, conspiração que foi derrotada e resultou na
condenação de Babeuf à guilhotina, sendo que ele foi executado no dia 28
de maio de 1797.
Portanto, neste ano, se completa o bicentenário do Manifesto dos Iguais e
também da morte de Babeuf. Entretanto, Babeuf e sua obra caíram no
esquecimento da maioria dos militantes e intelectuais de esquerda, o que
é lamentável. A breve introdução que fazemos aqui é uma homenagem e ao
mesmo tempo uma divulgação da obra deste revolucionário que, apesar dos
seus equívocos, soube manter-se fiel a si mesmo e ao adjetivo
revolucionário.
F.
Engels coloca que no interior da luta entre nobreza e burguesia já se
fazia presente a voz da classe trabalhadora. O proletariado era ainda
uma “classe incipiente” e por isso o desenvolvimento de sua consciência
de classe também era incipiente [1] . É neste contexto que surge a obra
de Babeuf, uma das primeiras manifestações da consciência de classe do
proletariado.
Babeuf
elaborou, segundo Kurt Lenk, uma “forma primitiva da teoria comunista
da revolução” [2]. Ele, após Marat, seria um dos primeiros formuladores
da tese da revolução inacabada. Ela seria inacabada pelo motivo de que o
fim de uma tirania não levava ao início do reino da igualdade mas sim à
instituição de uma nova tirania. Tais concepções, sem dúvida, foram
reflexões derivadas da análise da revolução francesa e dos
acontecimentos que ocorreram durante ela. A revolução é sempre
acompanhada da ameaça da contra-revolução e Babeuf é um dos primeiros a
tematizar o problema da contra-revolução, graças a experiência histórica
da França e de seu envolvimento nela.
A
concepção política de Babeuf, ainda segundo Lenk, girava em torno da
necessidade histórica de um levante dos pobres contra os ricos para se
instaurar a igualdade. A sua proposta é a de que este levante, para não
se tornar mais uma “revolução inacabada”, deve produzir uma revolução
que não fosse meramente política, onde apenas se troca de governantes,
mas uma revolução social, que instauraria a igualdade da comunidade de
bens. É aí que se encontra um dos pontos fracos da concepção de Babeuf:
ele focaliza sua concepção de comunismo na distribuição de bens e não no
modo de produção, ou seja, não percebe claramente que a distribuição é
determinada pela produção e que por isso nenhuma “distribuição de bens”
poderá trazer a igualdade sem haver modificação na produção, isto é, que
somente a autogestão coletiva da produção pode permitir a igualdade.
O Manifesto dos Iguais é o documento revolucionário mais importante do século 18. Babeuf começa seu Manifesto constatando
que o povo francês vive há aproximadamente vinte séculos em regime de
escravidão, mas desde 1791 anseia pela felicidade, igualdade e
independência. A igualdade, para ele, é a “primeira promessa da
natureza”. Sua concepção é a de que os seres humanos nascem livres e
iguais mas que a sociedade fundada na propriedade de bens os corrompe e
substitui, assim, a igualdade natural pela desigualdade social. Aqui se
vê uma concepção semelhante a de Rousseau. Mas a concepção de Babeuf não
é tão idêntica a de Rousseau como se pode imaginar à primeira vista. A
afirmação de Babeuf, que relaciona igualdade entre os seres humanos e a
natureza, é inexplorada pela filosofia, pela religião, pelas ciências
humanas, pelo marxismo e pelo anarquismo. As diversas concepções de
natureza humana apontam para algo que os indivíduos da espécie humana
possuem em comum mas não se refere às relações sociais instauradas por
eles. Mesmo Rousseau e todos os outros que consideram o ser humano como
bom por natureza nunca pensaram nestes termos. Sem dúvida, a maioria
destes defendia a igualdade, mas a considerava como resultado da bondade
humana natural e não que ela mesma fosse algo natural. Babeuf nunca
aprofundou este pressuposto de que a igualdade entre os seres humanos é
algo natural.
Para
Rousseau, os homens nascem iguais, ou seja, são individualidades iguais
que o “processo civilizatório” corrompe. Para Babeuf, os homens não
somente nascem e são iguais mas a própria igualdade entre eles é
natural. Isto pode ser melhor observado nas suas afirmações posteriores:
a igualdade é natural e por isso ela é também a “primeira necessidade
do homem”. A igualdade dos seres humanos é uma necessidade dos seres
humanos. Esta concepção retirada da frase espetacular de Babeuf, frase
que revela uma diferença fundamental entre Babeuf e os representantes
posteriores do socialismo (tanto marxistas quanto anarquistas), pois o
núcleo de sua concepção é a igualdade e não a liberdade. A ênfase
colocada pelos sucessores de Babeuf se encontra na busca da liberdade e a
igualdade aparece como condição necessária para sua realização e por
isso também é componente do projeto revolucionário [3]. Somente através
da suposição de que a igualdade é natural que se pode pretender que ela
seria também uma necessidade. Mesmo Marx, que postulava que o ser humano
é um ser social e que somente existe vivendo em sociedade, não pensava
que a igualdade fosse natural, pois o ser humano só pode existir no
interior de uma associação, que não é necessariamente igualitária.
Embora as relações igualitárias sejam, para Marx, as mais adequadas para
a plena manifestação da natureza humana, elas não são consideradas
naturais.
De
onde vem esta diferença entre Babeuf e os demais socialistas
posteriores? A nosso ver, tal como Marx e Engels colocaram, a concepção
de Babeuf surgiu numa época em que o proletariado ainda era uma classe
incipiente: “as primeiras tentativas do proletariado de fazer prevalecer
diretamente o seu próprio interesse de classe, realizadas numa época de
efervescência geral, no período da derrubada da sociedade feudal,
falharam necessariamente em decorrência tanto da forma pouco
desenvolvida do próprio proletariado como da ausência das condições
materiais de sua emancipação, condições que são precisamente o produto
da época burguesa. A literatura revolucionária que acompanhou esses
primeiros movimentos do proletariado tem forçosamente um conteúdo
reacionário. Preconiza um ascetismo universal e um grosseiro
igualitarismo” [4].
Juntamente
com o caráter incipiente do proletariado, podemos dizer que o caráter
incipiente da hegemonia burguesa e de sua ideologia possibilitaram o
surgimento deste igualitarismo representado por Babeuf, pois o
individualismo ainda não era um dos valores hegemônicos da sociedade
burguesa e por isso o igualitarismo era possível. Tal individualismo
acabou, posteriormente, penetrando no movimento operário e no movimento
socialista em geral e isto afogou o igualitarismo, que, sem dúvida,
seria um antídoto contra a burocratização e a contra-revolução no
interior da revolução (bolchevismo). Mas a luta pela liberdade também é
um antídoto e isto não impediu a contra-revolução. Porém, o
igualitarismo deve retornar a compor o projeto revolucionário e Babeuf
forneceu uma contribuição importante ao enfatizá-la. Porém, é claro, não
se deve cair nos exageros tão comuns em certos militantes, que querem
fazer crer que superaram o seu individualismo burguês com fantasias de
“cozinhas coletivas” e coisas do gênero (em contraste com uma prática
concreta bastante individualista).
Uma
terceira característica da igualdade apontada por Babeuf reforça a
hipótese de que ele considerava a igualdade natural: ela é “o elemento
essencial de toda legítima associação”. A igualdade é natural,
necessária e essencial. Ela é essencial a “toda legítima associação”,
pois a associação humana existente não é legítima já que não se
fundamenta na igualdade, seu estado natural. Desta forma, a sociedade
atual é uma perversão da natureza. Por conseguinte, a idéia básica que
serve de diretriz para o Manifesto dos Iguais é a igualdade
(compreendida como natural, necessária e essencial) e não somente deste
Manifesto como também de todos os escritos e atividades de Babeuf.
Afinal, ele fundou o “Clube dos Iguais”, idealizou uma “República dos
Iguais”, escreveu um “Manifesto dos Iguais”, criou uma “Canção dos Iguais” e participou de uma “Conspiração dos Iguais”.
Mas,
de qualquer forma, não é possível sustentar esta hipótese de que a
igualdade é natural. Sem dúvida, ela deve ser revalorizada no projeto
revolucionário, pois o igualitarismo, sem certos exageros, é contrário
ao individualismo burguês, e pode ser uma antídoto ao burocratismo,
embora muitos confundem e provoquem uma perversão da idéia de
igualitarismo transformando-a num “comunitarismo” marcado pelo fim da
liberdade individual, tal como no caso do partido de vanguarda
leninista. Entretanto, trata-se de uma perversão da idéia de
igualitarismo e não dela própria e não devemos jogar a criança fora
junto com a água suja. Além disso, ao matar a liberdade individual em
nome da unidade e se instaurar o domínio burocrático se rompe com todo e
qualquer igualitarismo, pois se implanta a desigualdade entre os
integrantes do partido, onde uns mandam e outros obedecem, onde uns são
os intelectuais capacitados para ditar a estratégia e os outros são
meros executantes, etc. Desta forma, o igualitarismo seria assimilado e
deformado pelo burocratismo, onde reina a desigualdade entre dirigentes e
dirigidos.
Mas o Manifesto dos Iguais
possui outros elementos importantes. Babeuf também efetua diversas
críticas que hoje foram aprofundadas por diversos pensadores e que estão
relacionadas com sua concepção de igualdade. Ele critica o uso de
“belas palavras” que tem por detrás de si a hipocrisia. Ele, mais do que
ninguém, tem o direito de contestar a hipocrisia, pois entre o seu
discurso e sua prática, entre sua palavra e sua ação, não havia
contradição. Ele não fazia discurso revolucionário e exercia uma prática
não-revolucionária, mas unia discurso e prática de forma harmônica.
Pagou com a morte por não ser apenas mais um hipócrita, como muitos que
existem inclusive entre os “ditos” revolucionários. Sua “última carta”,
escrita no cárcere na véspera de sua execução, endereçada à sua mulher e
seus filhos, tem um trecho que é o seguinte: “não creias que lamento
ter me sacrificado pela mais bela e mais nobre das causas, e, embora
todos os meus esforços tenham resultado inúteis, creio que levei a cabo
minha missão”. Isto demonstra que ele manteve-se fiel aos seus
princípios até o fim.
Mas
Babeuf acrescenta que é por causa da hipocrisia reinante que se
reconhece que “os homens são iguais” e se vê a mais cruel desigualdade. A
“ficção da lei” também declara a igualdade mas a nega na prática. A
declaração dos direitos do homem e do cidadão é um bom exemplo disso.
Trata-se de um esboço de uma crítica das ideologias e do direito
burguês. Todos aceitam a “igualdade relativa” ou a “igualdade formal”
mas não a igualdade efetiva.
Babeuf
declara: “queremos a igualdade real ou a morte”, “não importa a que
preço”. Babeuf pagou com a vida, assim como muitos outros, mas provou
que não estava fazendo apenas discurso, não falava em favor da igualdade
e se acomodava diante da desigualdade. Para ele, a igualdade real deve
ser conquistada. Por isso, não basta a troca de governantes ou a
igualdade de direito, é necessário a igualdade real. É preciso abolir as
distinções entre ricos e pobres, governantes e governados, entre
grandes e pequenos e deixar existir apenas as diferenças naturais entre
os sexos e as faixas etárias, mas neste último caso trata-se de
diferença e não de desigualdade. Babeuf manifesta a visão da oposição de
classe através de uma percepção ainda embrionária da luta de classes.
A solução para mal que assola o mundo, segundo Babeuf, é a “comunidade de bens”. Ele diz que é hora de implantar a República dos Iguais.
A igualdade efetiva encontrará como obstáculos os antigos detentores do
poder e de privilégios com sua mentalidade carregada de preconceitos e
valores egoístas (inclusive o individualismo), mas a maioria por sua
superioridade numérica deverá derrotar esta ameaça de contra-revolução
da minoria. É aqui uma das passagens da obra de Babeuf em que se vê o
perigo da contra-revolução e se tematiza sobre sua existência devido a
herança do mundo decadente sobre os indivíduos que se defrontam com a
tarefa de reconstruir a sociedade sob bases igualitárias. A percepção de
Babeuf ainda não foi inteiramente assimilada pelo movimento
revolucionário, mesmo depois da contra-revolução bolchevique na Rússia; o
caso da Revolução Espanhola; do Solidariedade, na Polônia; entre
outros. Babeuf também afirma que a revolução francesa, isto é, a
revolução burguesa, é apenas “a vanguarda de uma revolução maior”, a
“última revolução”, que é a revolução dos iguais, a revolução comunista.
A derrota da revolução francesa abriu os olhos de Babeuf e seus
seguidores (chamados de babouvistas), e eles foram educados pela derrota
e descobriram a necessidade de se opor aos dominantes e de forma
embrionária perceberam a luta de classes e a luta do proletariado (“os
pobres”) pela sociedade igualitária, comunista [5].
Por
fim, Babeuf afirma que o valor de uma constituição é medido por sua
relação com a igualdade real. Isto quer dizer que é na sua
correspondência com a efetividade da igualdade que se mede o valor de
uma constituição e isto significa que a declaração dos direitos do homem
e do cidadão é passível de crítica.
O Manifesto dos Iguais se caracteriza, portanto, por um igualitarismo que inaugura uma das primeiras manifestações do proletariado e daí sua importância histórica e política.
MANIFESTO DOS IGUAIS (1797)*
GRACHUS BABEUF
Nunca foi concebido e posto em execução um plano mais vasto que esse.
De quando em quando, certos homens de gênio, certos homens sábios têm falado,
De quando em quando, certos homens de gênio, certos homens sábios têm falado,
em voz baixa e temerosa, de dito plano. Nenhum deles, entretanto,
tem tido o valor necessário para dizer toda a verdade.
tem tido o valor necessário para dizer toda a verdade.
Povo da França!
Por
um espaço de vinte séculos tens vivido na escravidão e tens sido,
portanto, infeliz. Desde há seis anos respiras cansadamente em espera da
independência, da felicidade e da igualdade.
A
Igualdade! Primeira promessa da natureza, primeira necessidade do homem
e elemento essencial de toda legítima associação! Povo da França, tu
não tem tido resultado mais favorecido que as demais nações que vegetam
sobre esta mísera terra! Sempre e em todo o lugar, a pobre espécie
humana, vítima de antropófagos mais ou menos astutos, foi joguete de
todas as ambições, objeto de todas as tiranias. Sempre e em todo o lugar
se dirigiu ao homens com belas palavras; nunca e em nenhum lugar têm
obtido estes o que, com palavras, lhes foi prometido. Desde tempos
imemoriais se vem repetindo hipocritamente: os homens são iguais; e,
desde tempo imemorial, a desigualdade mais envilecedora e mais
monstruosa pesa insolentemente sobre o gênero humano.
Desde
o nascimento da sociedade civil, o atributo mais belo do homem vem
sendo reconhecido sem oposição, porém nem uma só vez sequer foi possível
vê-lo convertido em realidade: a igualdade não tem sido mais do que uma
bela e estéril ficção da lei. Hoje, quando ela está sendo exigida com
voz mais potente do que nunca, a resposta é: “calem-se miseráveis! A
igualdade de fato não é mais do que uma quimera; contentem-se com a
igualdade relativa: todos são iguais perante a lei. Que mais quereis,
miseráveis?” Que mais queremos? Legisladores, governantes, ricos
proprietários, agora é a vez de vós nos escutar.
Todos
somos iguais, é verdade? Este é um princípio incontestável, porque,
somente em caso de ser atacado por loucura, ninguém poderia dizer
seriamente que é de noite quando é de dia.
Agora bem, o que pretendemos é viver e morrer iguais já que iguais nascemos: queremos a igualdade efetiva ou a morte.
E,
não importa a que preço, conquistaremos esta igualdade real. Aí
daqueles que se coloquem entre ela e nós! Aí de quem se opor a um
juramento desta maneira formulado!
A Revolução francesa não é senão a vanguarda de outra revolução maior, mais solene: a última revolução.
O
povo tem passado por cima dos corpos do rei e dos poderosos aliados
contra ele: e assim sucederá com os novos tiranos, com os novos tartufos
políticos sentados no lugar dos velhos.
Que é que necessitamos além da igualdade de direitos?
Não
somente temos necessidade desta igualdade, a qual resulta da Declaração
dos direitos do homem e do cidadão [6]: a queremos ver entre nós, sob o
teto de nossas casas. Estamos dispostos a tudo, a fazer tábua rasa de
tudo o mais só para conservar esta. Pereçam, se é necessário, todas as
artes, contanto que se chegue à igualdade real!
Legisladores
e governantes, com tão pouco engenho como boa fé, proprietários ricos e
sem coração, em vão intentais neutralizar nossa sagrada empresa,
dizendo: “esses não fazem mais do que reproduzir aquela lei agrária
exigida já várias vezes no passado”.
Caluniadores,
calem-se por sua vez, e, em silêncio de confissão, escuta nossas
pretensões, ditadas pela natureza e baseadas na justiça.
A
lei agrária, ou a divisão da terra, foi aspiração momentânea de alguns
soldados sem princípios de algumas populações incitadas por seu instinto
mais que pela razão. Nós tendemos a algo mais sublime e mais
eqüitativo: o bem comum! A comunidade de bens! Nós reclamamos, nós
queremos o desfrute comum dos frutos da terra; os frutos pertencem a
todos.
Declaramos
que, ulteriormente, não poderemos permitir que a imensa maioria dos
homens trabalhem e fatiguem ao serviço e ao gosto de uma pequena
minoria.
Faz
já demasiado tempo que menos de um milhão de indivíduos vêem dispondo
do que pertence a mais de vinte milhões de semelhantes seus, de homens
iguais a eles.
Devemos
por fim a este grande escândalo, que nossos netos não irão querer nem
sequer acreditar! Devemos fazer desaparecer, enfim, essas odiosas
distinções entre ricos e pobres, entre grandes e pequenos, entre amos e
criados, entre governantes e governados.
Que
entre os homens não exista mais diferença que a que vem dada por idade e
por sexo. E, por que todos temos as mesmas necessidades e as mesmas
faculdades, que haja, pois, uma só educação para todos e uma mesma
nutrição. Todo o mundo está satisfeito por usufruir de um único sol e de
um mesmo ar. Por quê não há de ser o mesmo com a quantidade e qualidade
dos alimentos?
Porém, já os inimigos da ordem de coisas mais natural que se possa imaginar podem clamar contra nós.
Desorganizadores e facciosos, nos dizem, vós só quereis o massacre e o botim [7].
Povo da França!
Não
queremos perder tempo em contestar a estes senhores, porém a ti
dizemos: a sagrada empresa que estamos organizando não tem outro
objetivo que por fim às lutas civis e a miséria pública.
Nunca
foi concebido e posto em execução um plano mais vasto que esse. De
quando em quando, certos homens de gênio, certos homens sábios têm
falado, em voz baixa e temerosa, de dito plano. Nenhum deles,
entretanto, tem tido o valor necessário para dizer toda a verdade.
A
hora das grandes decisões chegou. O mal se encontra em seu ponto
culminante; está cobrindo toda a face da terra. O caos, sob o nome de
política, faz já demasiados séculos que reina sobre ela. Que tudo volte a
entrar na ordem primordial e que cada coisa volte a ocupar seu posto. O
grito de igualdade, os elementos da justiça e da felicidade estão se
organizando. É chegado o momento de fundar a República dos iguais, este
grande refúgio aberto a todos os homens. Chegou o dia da restituição
geral. Famílias sacrificadas, venham todas sentar na mesa comum posta
pela natureza para todos os seus filhos.
Povo da França!
A
ti está, pois, reservada a mais esplendorosa de todas as glórias. Sim,
tu serás o primeiro que oferecerás ao mundo este comovente espetáculo.
Os
hábitos inveterados, os antigos preconceitos farão novamente
o impossível para impedir a implantação da República dos iguais. A
organização da igualdade efetiva, a única que satisfaz todas as
necessidades sem causar vítimas, sem causar sacrifícios, talvez não
agrade, a princípio, a todos. Os egoístas, os ambiciosos rugirão de
raiva. Os que adquiriram injustamente suas posses dirão que está se
cometendo uma injustiça contra eles. Os gozos individuais, os prazeres
solitários, as comodidades pessoais serão motivo de grande pesar para os
indivíduos que sempre se tem caracterizado por sua indiferença ante aos
sofrimentos do próximo. Os amantes do poder absoluto, os vis
partidários da autoridade arbitrária, dobrarão penosamente suas soberbas
cabeças diante da igualdade real. Sua visão curta dificilmente
penetrará no próximo futuro da felicidade comum; porém, que podem fazer
alguns milhares de descontentes contra uma massa de homens completamente
satisfeitos de terem buscado por tanto tempo uma felicidade que tinham
tão à mão?
No
dia seguinte desta autêntica revolução, estes últimos, estupefatos,
dirão uns aos outros: “que pouco custava conseguir a felicidade comum!
Não tivemos a sorte de desejá-la alcançar. Ha! Por quê não a desejamos
bem antes que agora? É preciso repeti-lo uma e outra vez? Sim,
indubitavelmente, basta que, sobre a terra, um homem seja mais rico e
poderoso que seus semelhantes, que seus iguais, para que o equilíbrio se
rompa e que o delito e a desgraça desabem sobre o mundo.
Povo de França!
Quais
são os sinais que nos permitem reconhecer a excelência de uma
constituição? ... Aquela que se apoia integralmente sobre a igualdade é,
em realidade, a única que te convém, a única que satisfaz todas as tuas
aspirações.
As
cartas aristocráticas dos anos de 1791 e 1795 [8], em vez de romper
tuas cadeias, vieram reforçá-las. A de 1793 [9] pressupôs um grande
passo até a igualdade real; porém esta não conseguiu, todavia, atingir
este objetivo e não apontou diretamente para a igualdade comum, se bem
que consagrou solenemente o grande princípio da mesma.
Povo da França!
Abra os olhos e o coração à plenitude da felicidade; reconheça e proclame conosco a República dos iguais.
[1]Engels, F. Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico. 3a edição, São Paulo, Global, 1980.
[2]Lenk, Kurt. Teorias de la Revolución. Barcelona, Anagrama, 1978.
[3]Bakunin
expressa uma posição idêntica a de Marx e que é exemplar da concepção
tanto marxista quanto anarquista sobre a primazia da liberdade: “só
serei verdadeiramente livre quando todos os seres humanos que me cercam,
homens e mulheres, forem igualmente livres...” (Bakunin, M. O Conceito de Liberdade.
Porto, Rés, 1975, p. 22). Esta concepção de liberdade provoca a
necessidade da igualdade e a igualdade é sempre vista não como uma
necessidade em si mas sim como condição para a existência da liberdade.
Para Marx, tal como colocou no Manifesto Comunista, o livre desenvolvimento de todos é condição para o livre desenvolvimento de cada um, posição idêntica a de Bakunin.
[4]Marx, K. & Engels, F. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 95. Grifos meus.
[5]
“O babouvismo descobriu o que as massas haviam buscado em vão, com
habilidade, durante toda a Revolução Francesa: uma plataforma econômica e
social que superasse a revolução burguesa. Vislumbrou que o povo havia
sido vencido por que não soube opor à burguesia o seu programa de
classe” (Guérin, Daniel. La Lucha de Clases en el Apogeo de la Revolución Francesa ¾ 1793-1795. Madrid, Alianza Editorial, 1974, p. 299).
* Tradução de Nildo Viana.
[6]A
Declaração dos Direitos Humanos e do Cidadão foi proclamada em 1791 e
afirma em seu artigo primeiro: “os homens nascem iguais e continuam
iguais em direitos”, declaração que lança os fundamentos do direito
civil burguês e que foi criticada por Marx em A Questão Judaica (NRR - Nota da Revista Ruptura).
[7]Botim
é uma bota de cano curto. Tal referência ao botim parece simbolizar, em
oposição à bota de cano longo dos militares, o domínio dos civis, ou
seja, o fim da ordem estatal em substituição por uma associação
não-estatal, que, na linguagem dos detentores do poder, significaria o
“reino da plebe” ou “anarquia”, no sentido pejorativo que lhe dá os
adeptos do poder (NRR).
[8]A
primeira se refere à constituição de 1791 e a segunda à constituição do
ano III (1795) que restaura a ordem burguesa de forma legal na França
objetivando reforçar a dominação burguesa no plano estatal (NRR).
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Artigo e tradução publicados originalmente em:
Revista Ruptura, Ano 04, num. 06, Dezembro de 1997.
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