quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Tiririca é um trickster

1928 Macunaíma, em Macunaíma -o herói sem nenhum caráter, Mário de Andrade.
“ ‘- Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.’ Mas a mãe, ao invés de sensibilizar-se com os argumentos do filho teve uma raiva danada e abandonou Macunaíma no mato, dizendo: ‘-Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não.’ E, assim dizendo, desapareceu.

1958 D. Dinis Quaderna em A Pedra do Reino -e o príncipe do sangue-do-vai-e-volta, Ariano Suassuna
...o que mais me impressionava era a morte de um menino degolado por seu próprio pai, por ordem de meu bisavô. Na hora do sacrifício, o inocente, chorando, reprochava docemente o degolador, dizendo, num queixume: ‘-Meu pai, você não dizia que me queria tanto bem?

1968 Paulinho da Viola em entrevista publicada no suplemento Mais! Folha de São Paulo p. 12 domingo 25 de agosto de 2002
… aquele era um momento muito difícil para todos nós. Nunca soube se foi um sonho ou só um momento. Mas essa coisa ficou. Era tão forte que fecho os olhos, hoje, e sou capaz de visualizar a cena: eu entrava num ônibus, em frente ao Monumento aos Pracinhas e o ônibus estava cheio. Aí, eu olhava e tinha uma pessoa lá na frente, que às vezes era uma mulher, às vezes era um homem. Eu queria falar com aquela pessoa e não conseguia. A impressão que me dava, também, era a de que o ônibus tinha andado, mas continuava no mesmo lugar. Lembro que essa pessoa saía do ônibus e eu queria falar e não conseguia. Ela me dava adeus e eu não conseguia falar.

As pedras e os prínspes
do Reino (do sangue do vai-e-volta). parte 1
Homero Mattos Jr.

Tiririca e os brasileiros do Nordeste...
Primeiro, Tiririca.
O palhaço... Interessante persona essa. Repare: se puder divertir o outro com minha tolice, talvez possa assegurar sua tolerância para com minha parvoíce. Porém, minha sombra será um trickster -o safado, a transformar em aparente deboche blasé um cinismo visceral por uma ordem social percebida como iníqua.
O trickster é uma categoria arquetípica a sintetizar os múltiplos aspectos do tipo psicológico representado por figuras extremamente criativas, porém, dotadas de um caráter malandro orientado para ganhar a vida vitimando o próximo. E encerrá-la, quase sempre, como vítima de si mesmo.
Tricksters são, entre tantos, Pedro Malazarte; o saci Pererê; o Máskara e... Macunaíma.

Transcorridos os tempos de Colônia, Império e Velha República e ainda sem solução as mazelas secularmente acumuladas da vida social brasileira, às vésperas da revolução de 30 a consciência brasileira , na pessoa de Mário de Andrade, mostrou-se apta para processar e ordenar as visões fantásticas reveladas em Macunaíma (1928). 
Para desenvolver a crítica social que, essencialmente, é Macunaíma, seu autor serviu-se de imagens provenientes das lendas e mitos sul americanos descritos na obra Do Roraima ao Orinoco do etnógrafo e naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, segundo o qual a palavra macunaíma (parece) derivar de maku=mau e ima=grande... Neste aspecto terrível, escolhido não por acaso para identificar um personagem nascido no Brasil profundo, talvez haja uma pista para entender as causas da alarmante criminalidade em expansão... do Rio Grande ao Rio da Prata.
Para Macunaíma pai e mãe -duas presenças fundamentais na construção de uma personalidade equilibrada- são duas grandes, enormes abstrações. Por isso sua história, antes de ser cômica, é trágica. Do começo ao fim. 
Em termos da psicologia junguiana, os conteúdos revelados em Macunaíma podem ser vistos como uma tentativa do inconsciente coletivo brasileiro de impor à nossa consciência civil uma reflexão sobre as funestas conseqüências de um longo processo de negação, de não-reconhecimento, a transformar doçura original em assombro impotente, face a um mundo implacavelmente mesquinho e brutal em sua insaciável rapacidade. 
À inocência desamparada sobrevêm, primeiro, o sentimento de inferioridade e, em seguida, um desejo desabrido de tornar-se superiormente importante e portanto, de modo grotesco, reconhecido. Não por si mesmo, mas pelo outro.
Apesar da qualidade espantosamente perversa e sanguinolenta das imagens onírico-mitológicas presentes nas páginas de Macunaíma, a história -à semelhança do que (ainda) ocorre no espaço físico e social brasileiro- se desenvolve em meio a paisagens e seres amistosos, conselheiros e cooperativos. Tais, todavia, são invariavelmente ignorados pelo protagonista principal. Faz sentido.
A história de Macunaíma, na verdade, relata um processo inconsciente de formação da identidade.
Não por outro motivo, o argumento central da narrativa é a procura por uma pedra, um dos símbolos universais da identidade pessoal. No caso de Macunaíma, mais precisamente, trata-se do muiraquitã -o pequeno amuleto de formato fálico que as índias Icamiabas (i.e=mulheres sem marido) ofereciam aos índios Guacaris, com os quais se acasalavam apenas uma vez por ano, durante a festa da Lua.
Macunaíma se casa com Ci, a rainha das Icamiabas. Ambos tem um filho que, ainda bebê, morre ao beber leite envenenado, após a cobra-preta picar o seio da mãe. Desolada, Ci, subindo por um cipó, resolve ir para o céu e virar constelação (a Ursa Maior). Antes, porém, oferece a Macunaíma um muiraquitã.
Pouco tempo depois, desolado, ao visitar o túmulo do filho, Macunaíma vê nascer sobre o lugar onde fora enterrado o corpo uma plantinha: o guaraná.
O guaraná, sabemos todos, é um revigorante, um energético...
Porém, segundo seu criador: Macunaíma é o que ainda não pode ser
Ao final da Velha República, antes de tudo , Macunaína ainda não é um forte. Não sabe o que fazer com o muiraquitã e, talvez por isso mesmo, vive a perdê-lo constantemente.
À pedra para qual o herói sem caráter do Brasil no final dos anos 20 não foi capaz de encontrar um sentido, saberá (e muuuuuito!) dar-lhe um D. Dinis Quaderna, o  personagem central da grande epopéia da raça escrita pelo paraibano Ariano Suassuna: A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.
Mas isso se deu depois.
Ou melhor: depois e durante. O suicídio de Vargas; a tentativa de impedir Juscelino; a deposição de João Goulart; o golpe de 64...



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