quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Depois de Tiririca, os brasileiros do Nordeste...

Inglaterra, junho de 1949
No final da tarde, Chateaubriand, Gueiros e o embaixador brasileiro Moniz de Aragão tomaram um carro e foram até a casa de campo de Churchill (Winston), que queria conhecer o brasileiro que comprara seu quadro. O jornalista (Chateaubriand) levava nas mãos uma valise de couro e, depois de um chá e alguns minutos de conversa, anunciou ao ex-premiê: ia sagrá-lo Cavaleiro da Ordem do Jagunço, que acabara de criar especialmente para que o primeiro condecorado fosse o líder britânico. O líder conservador (Churchill) pareceu achar graça quando Chateaubriand pediu que ele se apoiasse sobre um dos joelhos para ser condecorado. O jornalista tirou da malinha um chapéu de cangaceiro, que colocou sobre a cabeça do agraciado, e cobriu seus ombros com um mal-cheiroso gibão de vaqueiro nordestino em couro cru. Pediu que Gueiros colocasse sobre o ombro de Churchill um punhal paraibano de cabo de osso e passou a pronunciar em português, com toda solenidade:
- Winston Churchill: em nome de Chico Campos, do suave sertão das Gerais, grão-mestre da Ordem, e de Antônio Balbino, senhor do Rio Grande, no sertão duro da Bahia, eu vos armo comendador da mais valorosa jerarquia do Nordeste do Brasil, a Ordem do Jagunço.[1]  

As pedras e os prinspes
do Reino (do sangue do vai-e-volta).
Homero Mattos Jr.


Depois de Tiririca, os brasileiros do Nordeste...

Ao final dos anos 50, em meio à Guerra Fria e a um Brasil orgulhoso de si e em vésperas de praticar uma política externa independente, Ariano Suassuna em sua obra O Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, faz um juiz Corregedor interrogar a um acusado:-O senhor é extremista de Esquerda, de Direita ou de Centro? a o quê, o acusado responde: -De nenhum dos três... Sou Monarquista de Esquerda!
O acusado é  Dom Pedro Dinis Quaderna, porta-voz do Povo da Vila de Estaca Zero, personagem central do romance.
Mais do que um posicionamento partidário, a resposta de D. Dinis revela a retomada e maturidade da consciência que em Macunaíma nem sequer é nacional.[2]
Observe-se que Macunaíma é uma obra do final da República Velha, período representativo de um Estado omisso perante a causa pública, mas prestimoso em face dos interesses particulares de seus amesquinhados dirigentes. Outra, porém, é a realidade do período desenvolvimentista pós-Getúlio, durante o qual foi gestado o conteúdo de O Romance d’A Pedra do Reino.
Conhecendo a história de Macunaíma, vejamos a de D. Dinis (nas palavras [3] de seu criador).

[ O sonho de Dom Dinis é fazer do Brasil um Império de Canudos, um reino de república popular, com a justiça e a verdade da Esquerda, porém, com beleza fidalga. Mas, Dom Dinis é criticado por dois intelectuais: um filósofo negro montado em uma égua vermelha chamada Coluna e um poeta branco montado em um célebre corcel negro chamado Temerário. Ambos acham que Dom Dinis tornou-se um safado galhofeiro e, portanto, incapaz de fazer qualquer coisa que se aproveite porque, em contato com folhetos e romances de safadeza, contraiu três defeitos gravíssimos: o desvio heróico, o desvio obsceno e a galhofa demoníaca.
Uma dúvida atroz atormenta o poeta branco: como ser Fidalgo e Cruzado numa terra dessas, que nem ao menos possui um padroeiro belicoso ao qual invocar! Os Cruzados ingleses podem gritar por São Jorge, os espanhóis por São Tiago, os franceses por São Luís e nós temos que chamar por Nossa Senhora da Conceição! Mas -observa D. Dinis- Nossa Senhora da Conceição é boa para casos de guerra, pois na Batalha dos Guararapes a situação estava ruim para os Brasileiros e então ela apareceu e os holandeses perderam!
Dom Dinis possui elevada auto-estima porque, ao passo que o poeta branco é somente godo/ibérico e o filósofo é negro/tapuia, ele é:
árabe/godo/negro/judeu/malgaxe/suevo/berbere/fenício/latino/ibérico/cartaginês/troiano/cario/tapuia... 
Por causa das dificuldades que passou em sua atribulada existência, D. Dinis tem muito contato com o Povo, os Cangaceiros, os Vaqueiros, as Mulheres-Damas, os Cantadores e etc, enquanto o poeta e o filósofo, apesar de viverem falando e filosofando sobre o Povo, vivem fechados entre o mofo das suas respectivas casas e as teias-de-aranha da Biblioteca... por isso eram perdidos na grandeza de suas idéias e seus sonhos. Muito distraídos para as ciladas da vida prática, cada um era radical por um lado só. Juntando as opiniões azuis de um com as vermelhas do outro, D. Dinis poderia realizar a receita. Então, na tentativa de conciliar diferenças e manter a união, propõe ao poeta e ao filósofo que os três, juntos, fundem uma Academia com sessões de três tipos: 1) as de gabinete, destinadas a discutir Literatura fidalga, fechada, pura, individual, poética e sonhosa; 2) as a , onde, com os pés no chão, os três se libertariam do mofo da Literatura burguesa decadente, ligando-se à realidade, à análise e à crítica dos males sociais. Tudo isso a pé. Como o povo faminto das estradas... As sessões do tipo 3), a cavalo, seriam destinadas a discutir os amores, as cavalarias, os cangaços e as quengadas dos folhetos. 
D. Dinis pretende conciliar as viagens filosóficas de um com as demandas poéticas do outro, dando como resultado romances interessantes, com heroísmos, safadezas, batalhas, castelos amorosos e perigosos, amores legendários, gargalhadas, putarias e outras coisas divertidas e boas de ler. Se é para contar a história só com os sonhos do estilo rapão-ranhoso da Direita, ou somente com a exatidão mesquinha do estilo raso da Esquerda, não vai, de jeito nenhum! Eu só sei contar as coisas no meu estilo... dos Monarquistas da Esquerda! esclarece D. Dinis, a quem preocupa o fato de ainda existir na Vila de Estaca Zero um terceiro chefe extremista: O Comendador... arrendatário do Açougue Público, dono do moinho, da torrefação, da padaria e de quase todas as vendas. Raivosamente adversário da Direita e da Esquerda, O Comendador atua, extremadamente, pelo Centro...  opondo-se a qualquer medida.
Todos são unânimes contra os Burgueses: o filósofo, por serem brancos e ricos; o poeta, por não serem Fidalgos; e Dom Dinis, por nunca montarem a cavalo não andarem com bandeiras e, tampouco, se meterem em Cavalhadas, vaquejadas e outras cavalarias. Péssimos, como personagens de Epopéia!  Por esse motivo caem todos diante das astúcias e cortesias de um certo Doutor, homem gentil e cheio de habilidades no que se refere a astúcias, chaves e caminhos, ardis e defesas novas... Coisas de valor inestimável para a vida prática!
Ao final da narrativa, distribuindo cartas de nobreza e trazendo amarrada ao pescoço as cores do Papa e no indicador da mão direita uma pedra-de-grau de Licenciado em Direito, o Doutor assegura a Dom Dinis um título de nobreza e ao poeta um título de Comendador. O filósofo negro opta pelo título de Visconde... O poeta protesta alegando que o filósofo é negro e comunista, porém, temeroso de desmoralizar a Ordem que o haveria de agraciar, não se atreve mais a criticar coisa alguma. O poeta e o filósofo... lentos em todos os momentos da ação, eram rapidíssimos nas fugas, observa Dom Dinis, a partir da solidão do cárcere em que se encontra e de onde narra sua história.]

As últimas palavras d’O Romance da Pedra do Reino são, também, as últimas de D. Dinis, lembrando o momento em que solicitara uma pequena mudança nos versos da canção entoada pelo povo no momento de sua coroação:
... eu ordenara que pusessem o brasileiríssimo e sertanejo gavião tourano.... servia muito melhor de insígnia para minha realeza do que aquele bestíssimo gavião estrangeiro que é a águia. 
Na essência... era esse o enigma.

Tal enigma  será o assunto a seguir e a finalizar esta série de três ensaios.


[1]   ver Morais, Fernando Chatô - o rei do Brasil p. 492 e foto  p. 493 ed. Companhia Das Letras São Paulo,SP 1994

[2] Já em poder do muiraquitã e retornando às margens do rio Uraricoera, Macunaíma deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.
Andrade, Mário 'Macunaíma' p. 140 31a. edição ed. Livraria Garnier Belo Horizonte, MG 2000

[3] N.A – De modo a tornar possível, de modo coerente, neste ensaio, um resumo compacto e parcial das 750 páginas de A Pedra do Reino... (5a edição José Olympio Editora Sp, SP 2004), somente alguns tempos verbais encontram-se alterados em relação à escrita, incomparável, de Ariano Suassuna, cujos termos originais e fluxo narrativo foram mantidos integralmente.

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