sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As pedras e os prínspes do Reino (conclusão)

Há na alma um processo que tende para um fim. Independentemente das condições exteriores
C.G. Jung[1]

... ande com cuidado, porque todos esses assuntos são muitos misteriosos. Não pense que o senhor, por ser formado, resolve todos eles assim, com uma penada só, não... Até compreendo que o senhor fica com vergonha de acreditar em certas coisas. Mas eu, que sou ignaro, tenho o direito de não ter vergonha de acreditar na verdade. ...o Prinspe... Cada vez que ele aparece, adota um nome diferente, de acordo com as necessidades e perigos da Guerra do Reino!Dom Dinis[2]

- João Goulart... O que havia contra ele... Achávamos que o seu governo iria ser faccioso, voltado inteiramente para a classe trabalhadora, em detrimento do desenvolvimento do país... o IPES, congregando o interesse da classe empresarial, difundia a idéia de um movimento contra o Jango. Não tínhamos uma proposta de governo. Achávamos que esse problema iria ser resolvido depois. Em primeiro lugar, tínhamos de derrubar o Jango. Ernesto Geisel[3]


As pedras e os prinspes
do Reino (do sangue do vai-e-volta). conclusão
Homero Mattos Jr.
 
Levando-se em conta o desenrolar da História, talvez o grande enigma da vida do padre estadunidense Patrick Payton -o idealizador das marchas para mobilizar a família católica contra o perigo do comunismo- tenha sido saber se, de fato, Deus atendeu à convocação das senhoras da classe média alta paulistana e marchou pelo centro de São Paulo em desagravo ao Santo Rosário, ao lado delas e dos funcionários que a iniciativa privada dispensara para tal no final da tarde de 19 de março de 1964.
Porém, quanto ao interesse comum a unir pescadores de alma e pescadores de peixe propriamente dito, não há mistério: poder.
E é na difusa zona fronteiriça entre zelo pelo refinamento do espírito e o apego ao conservadorismo político que costumam ser fechados os, embora costumeiros, paradoxais acordos entre aqueles que supostamente a nada deveriam se apegar e aqueles que declaradamente a nada desejam renunciar.
Que tais consigam compatibilizar seus interesses não chega a impressionar. Perigoso é o método.
Satanizar um antagonista de modo a justificar-lhe o merecido final que lhe haverá de ser imposto por um heróico protagonista, não é apenas o milenar e banal recurso dramático persa-semita que consagrou Hollywood e talvez destrua o mundo. Ser do Bem e combater o Mal é a lógica duelista (isto é, a dialética) necessária aos ilusionistas da conquista e preservação do status quo per seculum seculum seculorum.
Mas, felizmente, não é possível apoderar-se de um espírito cuja mudança constante é a própria natureza da sua eternidade.

No dia 1º de abril de 1964, quando o jornal O Estado de São Paulo foi para as bancas com a manchete Democratas dominam toda a Nação! , Ariano Suassuna encontrava-se a meio-caminho de concluir O Romance d'A Pedra do Reino ...obra que iniciara seis anos antes e haveria de concluir em 1971.
Se Macunaíma, escrito em seis dias, nos permite apreciar o estágio da consciência brasileira pré-Getúlio, a Pedra do Reino, composto ao longo de treze anos, nos mostra o estado dessa mesma consciência pós-Getúlio. Talvez por isso, comparando-se estas duas obras repletas de conteúdo onírico relacionado ao desenvolvimento da identidade brasileira, é notável o fato de que ao atravessar o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco o herói de Mário de Andrade, Macunaíma -sempre ativo em todos os lugares por onde passa à procura do muiraquitã (e são todos os recantos do Brasil), não faz absolutamente nada; ao passo que Pedra Bonita-PE é, precisamente, o cenário escolhido por Ariano Suassuna para nos contar a respeito do Reino junto a uma Pedra, dentro da qual, prisioneiro e encantado, está El-Rei Dom Sebastião...
Poucas figuras representam tão bem a questão da identidade nacional como Dom Sebastião.

os fatos
O grande temor de Portugal sempre foi a possibilidade de perder sua soberania para a Espanha. Por isso, era vital para o Estado português que seus reis pudessem deixar descendência apta a suceder-lhes no trono. Não foi este, entretanto, o caso de D. João III (talvez o melhor e mais capaz de todos os reis de Portugal) cujos filhos a ele não sobreviveram. Razão pela qual ao nascer (finalmente!) o neto de D. João III recebeu o cognome de O Desejado.
Porém, incumbidos de educar o futuro herdeiro do trono, os jesuítas acabaram por criar um exaltado fanático religioso que acreditava ser uma espécie de capitão de Cristo destinado a levar adiante a idéia (já fora de moda na época) de derrotar os árabes que, de há muito, haviam sido expulsos da Península Ibérica e confinados na África do Norte.
Determinado, porém, cinco anos depois de ter sido derrotado pelos árabes, D. Sebastião uma vez mais encontrou alento para seus propósitos no pedido de auxílio feito por um líder muçulmano deposto em meio a uma briga familiar. E assim, retornando ao Marrocos à frente de um exército misto de portugueses e mercenários, foi esmagado pelos adversários e desapareceu no meio da batalha. Em 1578.
Dois anos depois o trono português e todo seu império passaram às mãos da Espanha.

os mitos
Se Elvis (1935-1977) está vivo, D. Sebastião (1544-1578) também está.
O sebastianismo, a crença no retorno de D. Sebastião, é o eixo da narrativa de O Romance da Pedra do Reino. E o mito em torno do qual gravita o sebastianismo é o da salvação dos injustiçados. Tal qual representado no mito grego de Teseu, aquele, o do Labirinto.
... e a falha-trágica de Teseu foi (é )...
Após ter liquidado o Minotauro, Teseu despreza o amor de Ariadne - sem a qual sua tarefa teria sido impossível- e a partir desta atitude de indiferença inicia-se para o herói, literalmente, um inferno. Depois de permanecer no Hades, Teseu retorna a Atenas para encontrá-la em poder dos nobres, irritados com as reformas democráticas que ele havia realizado. Desgostoso, Teseu isola-se em uma ilha. Certo dia, o rei local temendo que Teseu reivindicasse a posse da ilha convida o herói para avistar a paisagem do alto de um penhasco à beira-mar e, no momento oportuno, o empurra pelas costas precipício abaixo. O túmulo de Teseu, que em vida fora o campeão da democracia, o refúgio e o baluarte dos injustiçados se tornará, com o apoio da mídia local, abrigo inviolável dos escravos fugitivos e dos oprimidos.[4]
 
A incorporação da figura de D. Sebastião em O Romance da Pedra do Reino é um contraponto de resistência à fraqueza e desesperança de Macunaíma, cuja história  encerra-se nos seguintes termos: Não havia mais ninguém lá. Os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá. Um silêncio imenso dormia à beira do rio Uraricoera. Ninguém jamais não podia saber tanta história bonita e a fala da tribo acabada. Um silêncio imenso dormia à beira do rio Uraricoera. ... A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu. ...Tem mais não.[5]
À incapacidade do personagem de Mário de Andrade em encontrar um significado e um sentido para a pedra-amuleto que ganhara da mulher amada, compare-se a garra e determinação expressas nas palavras do herói da Vila de Estaca Zero: Havia um grande País de nação mouro-cruzada, e havia as Pedras do Reino. O Rei tinha duas pedras na Coroa imperial: perdeu uma e não achou mais outra que fosse igual. Mas vai procurar de novo: e empenha seu sangue o Povo, que o Tesouro é colossal![6]

Este é o enigma a que se refere D. Dinis/Ariano Suassuna ao final de sua história: o contínuo ressurgir de avatares da alma brasileira. Que boa parte destes tenham origem no Nordeste talvez seja apenas uma questão da sadia imunidade cultural a fortalecer-lhes os ânimos.
É, pois, na forma de uma cantiga regional típica posta na voz de uma personificação da História (a Velha do Badalo) que o autor da Pedra do Reino nos remete a fatos posteriores, em muito, à própria obra e às funestas conseqüências das estripulias do padre Payton e suas prestimosas senhoras (e maridos).
Nosso rei foi se perder nas terras do Malpassar.
  Deitam sortes à Ventura Quem o havia de buscar.
  O Cavaleiro escolhido não se cansa de chorar:
  vai andando, vai andando, sem nunca desanimar,
  até que encontrou um Mouro num Areal, a velar.
  -Por Deus te peço, bom Mouro, me digas, sem me enganar
 Cavaleiro de armas brancas se o viste passar.
  -Esse Cavaleiro, amigo, morto está, neste Pragal,
  com as pernas dentro d’água e o corpo no Areal.
  Mas é engano do Mouro, nós vamos nos aliar:
  o nosso rei encantou-se nas terras do Malpassar
  e, um dia, no seu Cavalo, nosso Rei a de voltar! [7]

A um vir-a-ser é possível retardar, mas não impedir sua realização.
 

[1] ver Jung, C.G. Psicologia e Alquimia, Obras Completas vol. XII pp.19/20/28/45
ed. Vozes Petrópolis, Rio de Janeiro 1991

[2] ver Suassuna, Ariano A Pedra do Reino e príncipe do sangue do vai-e-volta pp 157; 619; 698; 701 e 704
5a edição José Olympio Editora Sp, SP 2004

[3] ver D’Araujo, Maria Celina; Castro, Celso Ernesto GEISEL pp.141/150/162 e 164
5a edição Fundação Getúlio Vargas editora São Paulo, SP 1998

[4] ver Brandão, Junito de Souza Mitologia Grega vol. III pp.149 a 174
ed. Vozes Petrópolis, RJ 1987

[5] ver Andrade, Mário Macunaíma 31a. edição
ed. Livraria Garnier, Belo Horizonte, MG 2000
A prenunciar o desalento final de Macunaíma, é significativa, também, a seguinte passagem: [por] um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Pra viver lá assim como tinha vivido era impossível (...) pra parar na cidade do Delmiro (...) carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização. 
Delmiro Gouveia, assim como o Barão de Mauá ou o relativamente contemporâneo engenheiro Gurgel, é um exemplo concreto de tentativas abortadas de expressão da identidade brasileira.
 
[6] ver Suassuna, Ariano op.cit  p. 322

                        [7] ver Suassuna, Ariano op.cit  p. 691
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