Clichê de Eisenstein
1. A mão levanta a faca.
2. Os olhos da vítima abrem-se repentinamente.
3. Mãos agarram uma mesa.
4. A faca desce.
5. Olhos piscam involuntariamente.
6. O sangue espirra.
7. Uma boca solta um grito.
8. Algo pinga no sapato.
1
corte
uma lâmina curta
percorre o deserto
entre omoplatas e pulmões
e carrega pedras de lágrimas
não é corte profundo
somente o suficiente
para que sangre
seguro e contínuo
sem se talhe
ou se interrompa
é necessário sangue
carece
que vaze
como um pequeno rio
mão precipitada a aço
não é cirúrgico o talho
mas carrega a gravidade
de galáxias moribundas
não é mão gentil
de costas e sem um espelho
o verdugo invisível
2
pesadelo
despertar
dentro de um sonho
ainda em um pesadelo
ter a alma em susto
arrancada a ponta de faca
punhais de gelo glacial
lástimas
e crisálidas cruas da vela
luzes que crepitam
e criam fantasmas pálidos
acordar para a morte
o torpor do sono da morte
as bailarinas ciganas da morte
o riso cínico da morte
sem uma carta
para o avesso
a mesa posta para o norte
da morte
o balbucio do medo
rouco
triste
e depois
a conformação
3
mesa
a mesa
o cerne duro da madeira
três toques para espantar
má sorte
inúteis
dedos crispados no lenho do cedro
dor líquida e vermelha
percorre em rios subterrâneos
há de permanecer ali
olhos vazados de alma
até que o dia se extinga
entre a língua
e o leque de cores quentes
há os espaços dos pássaros roxos
seu canto
uma mensagem
ruflar de asas de anjo
que abandonam a cena
desconcertados
a dor
lembrar da dor
4
gravidade
nada mais preciso
que a gravidade
e seu canto cósmico
desde o limiar das eras
o movimento
que antecipa todas as rotações da terra
na parede um calendário lunar
signos chineses a dançar em círculo
todos os espelhos da casa quebrados
sete noites de azar
em suor e panos velhos
esta camisa por mortalha
5
olhos
por três vezes
os olhos fitaram o lume
luz que se turvava lenta e triste
olhar
e nunca mais repetir este gesto
três vezes será o suficiente
terá de ser
o suor novo
e ainda assim se renova
corre em bicas
e os líquidos se misturam
as paredes
são testemunhas
do tentar
6
sacrifício
vulcão de jorro contínuo
não ama mais
o espaço contido
e sofre a pressão
espasmo
lava a madeira rústica do chão
lava o encardido das eras
todos os testemunhos históricos
do pó
fluxo bento
doado aos deuses
dádiva tomada a força
tudo retornará em sacrifício
7
boca
quanto tentou gritar
era tarde
a donzela branca já o cercara
urro silente na boca aberta
congelado como brasas
grito de pesadelo
dos lentos e arroxeados
dos que não tem som
o som
de um gargarejo de sangue
gutural
tinge os dentes e os lábios
saliva e carmim
do boi
só não se aproveita o berro
a resposta
silêncio
8
gotejar de relógios
uma mancha
que se avoluma aos poucos
gotejar de relógios
derramar o azeite da vida
em claro desperdício
nada afaga melhor um punhal
que o doce e quente sumo ferruginoso dos ossos
sapatos que tanto se encharcaram
de chuva fina e de monções
do cal das obras
do fino repasto dos vermes
outrora rotos
agora tintos
deitar o regaço sobre a mesa
como
uma oração abatida
a foice
descansa com vagar
e olhos abertos
perdidos na porta
por onde calmo
um vulto se esgueira
de Edson Bueno de Camargo
exercício de criação 23
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/07/exercicio-de-criacao-23.html
Parabéns, Edson. Que fôlego, que turbilhão de imagens.
ResponderExcluirEu já disse que não consegui superar esse desafio. Eu queria algo mais contido, a síntese de uma cena. Você disse que olptou pelo óbvio - oras, o óbvio costuma dar ótimos poemas.
Abraços.