quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Clichê de Eisenstein - Gambiarra Literária 23

Clichê de Eisenstein


1. A mão levanta a faca.
2. Os olhos da vítima abrem-se repentinamente.
3. Mãos agarram uma mesa.
4. A faca desce.
5. Olhos piscam involuntariamente.
6. O sangue espirra.
7. Uma boca solta um grito.
8. Algo pinga no sapato.





1

corte


uma lâmina curta
percorre o deserto
entre omoplatas e pulmões
e carrega pedras de lágrimas

não é corte profundo
somente o suficiente
para que sangre
seguro e contínuo
sem se talhe
ou se interrompa

é necessário sangue
carece
que vaze
como um pequeno rio

mão precipitada a aço
não é cirúrgico o talho
mas carrega a gravidade
de galáxias moribundas

não é mão gentil
de costas e sem um espelho
o verdugo invisível



2

pesadelo


despertar
dentro de um sonho
ainda em um pesadelo
ter a alma em susto
arrancada a ponta de faca

punhais de gelo glacial
lástimas
e crisálidas cruas da vela
luzes que crepitam
e criam fantasmas pálidos

acordar para a morte
o torpor do sono da morte
as bailarinas ciganas da morte
o riso cínico da morte

sem uma carta
para o avesso
a mesa posta para o norte
da morte

o balbucio do medo
rouco
triste
e depois

a conformação


3

mesa


a mesa

o cerne duro da madeira
três toques para espantar
má sorte

inúteis

dedos crispados no lenho do cedro
dor líquida e vermelha
percorre em rios subterrâneos

há de permanecer ali
olhos vazados de alma
até que o dia se extinga
entre a língua
e o leque de cores quentes

há os espaços dos pássaros roxos
seu canto
uma mensagem

ruflar de asas de anjo
que abandonam a cena
desconcertados

a dor

lembrar da dor


4

gravidade


nada mais preciso
que a gravidade
e seu canto cósmico
desde o limiar das eras
o movimento
que antecipa todas as rotações da terra


na parede um calendário lunar
signos chineses a dançar em círculo

todos os espelhos da casa quebrados
sete noites de azar
em suor e panos velhos

esta camisa por mortalha



5

olhos


por três vezes
os olhos fitaram o lume
luz que se turvava lenta e triste

olhar
e nunca mais repetir este gesto
três vezes será o suficiente

terá de ser

o suor novo
e ainda assim se renova
corre em bicas
e os líquidos se misturam

as paredes
são testemunhas
do tentar


6

sacrifício


vulcão de jorro contínuo
não ama mais
o espaço contido
e sofre a pressão

espasmo

lava a madeira rústica do chão
lava o encardido das eras
todos os testemunhos históricos
do pó

fluxo bento
doado aos deuses
dádiva tomada a força


tudo retornará em sacrifício



7

boca


quanto tentou gritar
era tarde
a donzela branca já o cercara

urro silente na boca aberta
congelado como brasas

grito de pesadelo
dos lentos e arroxeados
dos que não tem som

o som
de um gargarejo de sangue
gutural
tinge os dentes e os lábios

saliva e carmim

do boi
só não se aproveita o berro

a resposta

silêncio



8

gotejar de relógios


uma mancha
que se avoluma aos poucos
gotejar de relógios

derramar o azeite da vida
em claro desperdício

nada afaga melhor um punhal
que o doce e quente sumo ferruginoso dos ossos


sapatos que tanto se encharcaram
de chuva fina e de monções
do cal das obras
do fino repasto dos vermes

outrora rotos
agora tintos

deitar o regaço sobre a mesa
como
uma oração abatida
a foice

descansa com vagar
e olhos abertos
perdidos na porta
por onde calmo
um vulto se esgueira


de Edson Bueno de Camargo



exercício de criação 23
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2011/07/exercicio-de-criacao-23.html

Um comentário:

  1. Parabéns, Edson. Que fôlego, que turbilhão de imagens.
    Eu já disse que não consegui superar esse desafio. Eu queria algo mais contido, a síntese de uma cena. Você disse que olptou pelo óbvio - oras, o óbvio costuma dar ótimos poemas.
    Abraços.

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