quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Texto de 2005 da ELL revisitado.

Fazendo umas releituras de textos nem tão antigos, me deparei com uma série de textos que escrevi durante oficinas da ELL - Escola Livre de literatura de Santo André - SP - na Casa da Palavra; alguns são absolutamente inéditos, de vez em quando vou publicar algum que acho que tem a ver com o "espírito" do blog. 

Abraxas.






Barro primordial, relâmpagos da Terra primeva e choro de criança.


Dia 24 de maio de 2005, ao meio dia, após a passagem de mais cinco minutos, ouve-se pelos corredores da Casa de Parto de Sapopemba, um choro característico,

Um menino, que carrega a minha ancestralidade.

Aquele que desde o primeiro barro primordial, dos relâmpagos da Terra primeva, quando na sopa de aminoácidos que gerou a vida, quando uma pseudo-criatura criou uma membrana dupla, e uma imitação de cromossomo, um fragmento de RNA: a partir deste momento nenhum ser que foi sendo criado pela evolução, não deixou de ter um descendente, que permaneceu vivo e teve descendentes. Foi assim com o pai de meu pai. Foi assim com meu pai e minha mãe. Foi assim até a minha vez de nascer. Foi assim quando minha filha nasceu. Foi assim quando o meu neto nasceu. Temos perpetuado a espécie, e em especial nossa família em qualquer espécime que ela tenha transmudado, protozoário, verme, molusco, peixe, anfíbio, réptil, mamífero.

Tudo que tem vida é meu parente. Tudo o que é humano é meu primo. Mas, nada é tão próximo do que aquilo que cheira a nossa própria carne. Lembro-me de sua mãe ainda na barriga da sua mãe. De todo que conversávamos, eu falava, ela escutava. Hoje meu neto me deixa pasmo, é como se o analgésico para a dor na alma, fosse observar crianças recém nascidas. Que privilégio maravilhoso observar uma criança ainda um tanto borrada com o sangue placentário. É se sentir deus, e ao mesmo tempo ser absolutamente frágil e incapaz.

Então eu chorei como uma criança pequena. Depois como não o fazia a muitos anos. Rezei para que nossa mãe onipotente nos agasalhasse novamente em seu ventre e nos ninasse nos sonhos. Rezei para que meus ancestrais protegessem a minha cria e que a grande aranha que tece o destino, tramasse um fio longo e forte para meu neto.




Ausente do Círculo de leitura da E.L.L. – Casa da Palavra –24/05/2005.





sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As pedras e os prínspes do Reino (conclusão)

Há na alma um processo que tende para um fim. Independentemente das condições exteriores
C.G. Jung[1]

... ande com cuidado, porque todos esses assuntos são muitos misteriosos. Não pense que o senhor, por ser formado, resolve todos eles assim, com uma penada só, não... Até compreendo que o senhor fica com vergonha de acreditar em certas coisas. Mas eu, que sou ignaro, tenho o direito de não ter vergonha de acreditar na verdade. ...o Prinspe... Cada vez que ele aparece, adota um nome diferente, de acordo com as necessidades e perigos da Guerra do Reino!Dom Dinis[2]

- João Goulart... O que havia contra ele... Achávamos que o seu governo iria ser faccioso, voltado inteiramente para a classe trabalhadora, em detrimento do desenvolvimento do país... o IPES, congregando o interesse da classe empresarial, difundia a idéia de um movimento contra o Jango. Não tínhamos uma proposta de governo. Achávamos que esse problema iria ser resolvido depois. Em primeiro lugar, tínhamos de derrubar o Jango. Ernesto Geisel[3]


As pedras e os prinspes
do Reino (do sangue do vai-e-volta). conclusão
Homero Mattos Jr.
 
Levando-se em conta o desenrolar da História, talvez o grande enigma da vida do padre estadunidense Patrick Payton -o idealizador das marchas para mobilizar a família católica contra o perigo do comunismo- tenha sido saber se, de fato, Deus atendeu à convocação das senhoras da classe média alta paulistana e marchou pelo centro de São Paulo em desagravo ao Santo Rosário, ao lado delas e dos funcionários que a iniciativa privada dispensara para tal no final da tarde de 19 de março de 1964.
Porém, quanto ao interesse comum a unir pescadores de alma e pescadores de peixe propriamente dito, não há mistério: poder.
E é na difusa zona fronteiriça entre zelo pelo refinamento do espírito e o apego ao conservadorismo político que costumam ser fechados os, embora costumeiros, paradoxais acordos entre aqueles que supostamente a nada deveriam se apegar e aqueles que declaradamente a nada desejam renunciar.
Que tais consigam compatibilizar seus interesses não chega a impressionar. Perigoso é o método.
Satanizar um antagonista de modo a justificar-lhe o merecido final que lhe haverá de ser imposto por um heróico protagonista, não é apenas o milenar e banal recurso dramático persa-semita que consagrou Hollywood e talvez destrua o mundo. Ser do Bem e combater o Mal é a lógica duelista (isto é, a dialética) necessária aos ilusionistas da conquista e preservação do status quo per seculum seculum seculorum.
Mas, felizmente, não é possível apoderar-se de um espírito cuja mudança constante é a própria natureza da sua eternidade.

No dia 1º de abril de 1964, quando o jornal O Estado de São Paulo foi para as bancas com a manchete Democratas dominam toda a Nação! , Ariano Suassuna encontrava-se a meio-caminho de concluir O Romance d'A Pedra do Reino ...obra que iniciara seis anos antes e haveria de concluir em 1971.
Se Macunaíma, escrito em seis dias, nos permite apreciar o estágio da consciência brasileira pré-Getúlio, a Pedra do Reino, composto ao longo de treze anos, nos mostra o estado dessa mesma consciência pós-Getúlio. Talvez por isso, comparando-se estas duas obras repletas de conteúdo onírico relacionado ao desenvolvimento da identidade brasileira, é notável o fato de que ao atravessar o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco o herói de Mário de Andrade, Macunaíma -sempre ativo em todos os lugares por onde passa à procura do muiraquitã (e são todos os recantos do Brasil), não faz absolutamente nada; ao passo que Pedra Bonita-PE é, precisamente, o cenário escolhido por Ariano Suassuna para nos contar a respeito do Reino junto a uma Pedra, dentro da qual, prisioneiro e encantado, está El-Rei Dom Sebastião...
Poucas figuras representam tão bem a questão da identidade nacional como Dom Sebastião.

os fatos
O grande temor de Portugal sempre foi a possibilidade de perder sua soberania para a Espanha. Por isso, era vital para o Estado português que seus reis pudessem deixar descendência apta a suceder-lhes no trono. Não foi este, entretanto, o caso de D. João III (talvez o melhor e mais capaz de todos os reis de Portugal) cujos filhos a ele não sobreviveram. Razão pela qual ao nascer (finalmente!) o neto de D. João III recebeu o cognome de O Desejado.
Porém, incumbidos de educar o futuro herdeiro do trono, os jesuítas acabaram por criar um exaltado fanático religioso que acreditava ser uma espécie de capitão de Cristo destinado a levar adiante a idéia (já fora de moda na época) de derrotar os árabes que, de há muito, haviam sido expulsos da Península Ibérica e confinados na África do Norte.
Determinado, porém, cinco anos depois de ter sido derrotado pelos árabes, D. Sebastião uma vez mais encontrou alento para seus propósitos no pedido de auxílio feito por um líder muçulmano deposto em meio a uma briga familiar. E assim, retornando ao Marrocos à frente de um exército misto de portugueses e mercenários, foi esmagado pelos adversários e desapareceu no meio da batalha. Em 1578.
Dois anos depois o trono português e todo seu império passaram às mãos da Espanha.

os mitos
Se Elvis (1935-1977) está vivo, D. Sebastião (1544-1578) também está.
O sebastianismo, a crença no retorno de D. Sebastião, é o eixo da narrativa de O Romance da Pedra do Reino. E o mito em torno do qual gravita o sebastianismo é o da salvação dos injustiçados. Tal qual representado no mito grego de Teseu, aquele, o do Labirinto.
... e a falha-trágica de Teseu foi (é )...
Após ter liquidado o Minotauro, Teseu despreza o amor de Ariadne - sem a qual sua tarefa teria sido impossível- e a partir desta atitude de indiferença inicia-se para o herói, literalmente, um inferno. Depois de permanecer no Hades, Teseu retorna a Atenas para encontrá-la em poder dos nobres, irritados com as reformas democráticas que ele havia realizado. Desgostoso, Teseu isola-se em uma ilha. Certo dia, o rei local temendo que Teseu reivindicasse a posse da ilha convida o herói para avistar a paisagem do alto de um penhasco à beira-mar e, no momento oportuno, o empurra pelas costas precipício abaixo. O túmulo de Teseu, que em vida fora o campeão da democracia, o refúgio e o baluarte dos injustiçados se tornará, com o apoio da mídia local, abrigo inviolável dos escravos fugitivos e dos oprimidos.[4]
 
A incorporação da figura de D. Sebastião em O Romance da Pedra do Reino é um contraponto de resistência à fraqueza e desesperança de Macunaíma, cuja história  encerra-se nos seguintes termos: Não havia mais ninguém lá. Os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá. Um silêncio imenso dormia à beira do rio Uraricoera. Ninguém jamais não podia saber tanta história bonita e a fala da tribo acabada. Um silêncio imenso dormia à beira do rio Uraricoera. ... A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu. ...Tem mais não.[5]
À incapacidade do personagem de Mário de Andrade em encontrar um significado e um sentido para a pedra-amuleto que ganhara da mulher amada, compare-se a garra e determinação expressas nas palavras do herói da Vila de Estaca Zero: Havia um grande País de nação mouro-cruzada, e havia as Pedras do Reino. O Rei tinha duas pedras na Coroa imperial: perdeu uma e não achou mais outra que fosse igual. Mas vai procurar de novo: e empenha seu sangue o Povo, que o Tesouro é colossal![6]

Este é o enigma a que se refere D. Dinis/Ariano Suassuna ao final de sua história: o contínuo ressurgir de avatares da alma brasileira. Que boa parte destes tenham origem no Nordeste talvez seja apenas uma questão da sadia imunidade cultural a fortalecer-lhes os ânimos.
É, pois, na forma de uma cantiga regional típica posta na voz de uma personificação da História (a Velha do Badalo) que o autor da Pedra do Reino nos remete a fatos posteriores, em muito, à própria obra e às funestas conseqüências das estripulias do padre Payton e suas prestimosas senhoras (e maridos).
Nosso rei foi se perder nas terras do Malpassar.
  Deitam sortes à Ventura Quem o havia de buscar.
  O Cavaleiro escolhido não se cansa de chorar:
  vai andando, vai andando, sem nunca desanimar,
  até que encontrou um Mouro num Areal, a velar.
  -Por Deus te peço, bom Mouro, me digas, sem me enganar
 Cavaleiro de armas brancas se o viste passar.
  -Esse Cavaleiro, amigo, morto está, neste Pragal,
  com as pernas dentro d’água e o corpo no Areal.
  Mas é engano do Mouro, nós vamos nos aliar:
  o nosso rei encantou-se nas terras do Malpassar
  e, um dia, no seu Cavalo, nosso Rei a de voltar! [7]

A um vir-a-ser é possível retardar, mas não impedir sua realização.
 

[1] ver Jung, C.G. Psicologia e Alquimia, Obras Completas vol. XII pp.19/20/28/45
ed. Vozes Petrópolis, Rio de Janeiro 1991

[2] ver Suassuna, Ariano A Pedra do Reino e príncipe do sangue do vai-e-volta pp 157; 619; 698; 701 e 704
5a edição José Olympio Editora Sp, SP 2004

[3] ver D’Araujo, Maria Celina; Castro, Celso Ernesto GEISEL pp.141/150/162 e 164
5a edição Fundação Getúlio Vargas editora São Paulo, SP 1998

[4] ver Brandão, Junito de Souza Mitologia Grega vol. III pp.149 a 174
ed. Vozes Petrópolis, RJ 1987

[5] ver Andrade, Mário Macunaíma 31a. edição
ed. Livraria Garnier, Belo Horizonte, MG 2000
A prenunciar o desalento final de Macunaíma, é significativa, também, a seguinte passagem: [por] um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Pra viver lá assim como tinha vivido era impossível (...) pra parar na cidade do Delmiro (...) carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização. 
Delmiro Gouveia, assim como o Barão de Mauá ou o relativamente contemporâneo engenheiro Gurgel, é um exemplo concreto de tentativas abortadas de expressão da identidade brasileira.
 
[6] ver Suassuna, Ariano op.cit  p. 322

                        [7] ver Suassuna, Ariano op.cit  p. 691
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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Acidente literário – Perfume que lembra incenso, inunda trólebus lotado com o cheiro, e inebria poeta que escreve mais um poema inútil.


Exercício de criação 8


Acidente literário – Perfume que lembra incenso, inunda trolebus lotado com o cheiro, e inebria poeta que escreve mais um poema inútil.

Título:  Perfume com cheiro que se assemelha a incenso (totalmente desconhecido).
Local:  A bordo do trólebus linha 284 que faz a ligação Santo André - Diadema, Sentido Santo André, em uma das paradas da Avenida Lucas Nogueira Garcez, em frente ao pavilhão Vera - Cruz, São Bernardo do Campo.

Data: Em uma manhã entre fevereiro e março de 2007, não é possível uma precisão da data, uma vez que a testemunha do fato e também um dos protagonistas, tem problemas com memória e memorização de efemérides (já esqueceu o dia do próprio aniversário, e quase deu bolo na festa.)

Protagonistas: Um poeta de meia idade totalmente fracassado (e logo após uma entrevista frustrada de trabalho), o motorista do trólebus (pois senão este se desgovernaria), algo em torno de 89 passageiros ou mais, entre sentado e em pé, mulheres, homens, crianças, idosos, jovens, um casal gay não assumido, uma jovem com perfume que lembrava incenso (nunca foi identificada).

Tipo: Estimulação poética através do cheiro de um perfume, fato que gerou os primeiros versos de um poema.


Descrição do Acidente Literário:
Uma manhã, já quase na hora do almoço, um poeta de meia idade, ruminando seu mais recente fracasso, estava em estado de divagação, quando entrou no trolebus lotado uma mulher (não se sabe porque intui-se que fosse uma jovem).  A tal jovem usava um perfume que lembrava o cheiro de incenso,  que inundou momentaneamente a rotina proletária e sem sentido da vida das pessoas naquele veículo. A maior parte dos passageiros e motorista, dado ao seu treinamento de esquecimentos, logo incorporou a informação aos subconscientes e esqueceu imediatamente. O poeta passado dos quarenta anos e sem emprego definido, sofreu um processo de necessidade de criação escrita, descrito por alguns autores e cientistas como “estado poético” (outros autores denominam pasmaceira mesmo). Acometido de tal estado poético, o escrevinhador contumaz pegou seu pequeno caderno reservado especialmente para estes momentos e escreveu os versos “ mulheres que cheiram a incenso, não carregam cântaros de água nos cabelos”.  Não foi possível distinguir entre os passageiros do coletivo lotado, qual jovem emitia tal odor. Posteriormente já em sua residência, o poeta desfilou mais uma porção de palavras, que a todas juntas colocou o título cabalísticos. ( Este poema lhe rendeu um premiação em concurso literário e mote para a escrita de mais um livro de poemas que será lido apenas por uma meia dúzia de pessoas).

Recolhido por: Poeta de meia idade divagando em um trolebus. 
 
 
Exercício literário número 8, proposto pelo blog Gambiarra Literária, baseado em conto do poeta Jorge de Barros. Notificação de Acidente Literário:  
http://ooficiodoocio.blogspot.com/2010/11/notificacao-de-acidente-literario.html


Gambiarra Literária - Pratique Gambiarra Literária - O exercício faz o artífice.
http://gambiarraliteraria.blogspot.com/2010/11/exercicio-de-criacao-8.html

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Depois de Tiririca, os brasileiros do Nordeste...

Inglaterra, junho de 1949
No final da tarde, Chateaubriand, Gueiros e o embaixador brasileiro Moniz de Aragão tomaram um carro e foram até a casa de campo de Churchill (Winston), que queria conhecer o brasileiro que comprara seu quadro. O jornalista (Chateaubriand) levava nas mãos uma valise de couro e, depois de um chá e alguns minutos de conversa, anunciou ao ex-premiê: ia sagrá-lo Cavaleiro da Ordem do Jagunço, que acabara de criar especialmente para que o primeiro condecorado fosse o líder britânico. O líder conservador (Churchill) pareceu achar graça quando Chateaubriand pediu que ele se apoiasse sobre um dos joelhos para ser condecorado. O jornalista tirou da malinha um chapéu de cangaceiro, que colocou sobre a cabeça do agraciado, e cobriu seus ombros com um mal-cheiroso gibão de vaqueiro nordestino em couro cru. Pediu que Gueiros colocasse sobre o ombro de Churchill um punhal paraibano de cabo de osso e passou a pronunciar em português, com toda solenidade:
- Winston Churchill: em nome de Chico Campos, do suave sertão das Gerais, grão-mestre da Ordem, e de Antônio Balbino, senhor do Rio Grande, no sertão duro da Bahia, eu vos armo comendador da mais valorosa jerarquia do Nordeste do Brasil, a Ordem do Jagunço.[1]  

As pedras e os prinspes
do Reino (do sangue do vai-e-volta).
Homero Mattos Jr.


Depois de Tiririca, os brasileiros do Nordeste...

Ao final dos anos 50, em meio à Guerra Fria e a um Brasil orgulhoso de si e em vésperas de praticar uma política externa independente, Ariano Suassuna em sua obra O Romance d'A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, faz um juiz Corregedor interrogar a um acusado:-O senhor é extremista de Esquerda, de Direita ou de Centro? a o quê, o acusado responde: -De nenhum dos três... Sou Monarquista de Esquerda!
O acusado é  Dom Pedro Dinis Quaderna, porta-voz do Povo da Vila de Estaca Zero, personagem central do romance.
Mais do que um posicionamento partidário, a resposta de D. Dinis revela a retomada e maturidade da consciência que em Macunaíma nem sequer é nacional.[2]
Observe-se que Macunaíma é uma obra do final da República Velha, período representativo de um Estado omisso perante a causa pública, mas prestimoso em face dos interesses particulares de seus amesquinhados dirigentes. Outra, porém, é a realidade do período desenvolvimentista pós-Getúlio, durante o qual foi gestado o conteúdo de O Romance d’A Pedra do Reino.
Conhecendo a história de Macunaíma, vejamos a de D. Dinis (nas palavras [3] de seu criador).

[ O sonho de Dom Dinis é fazer do Brasil um Império de Canudos, um reino de república popular, com a justiça e a verdade da Esquerda, porém, com beleza fidalga. Mas, Dom Dinis é criticado por dois intelectuais: um filósofo negro montado em uma égua vermelha chamada Coluna e um poeta branco montado em um célebre corcel negro chamado Temerário. Ambos acham que Dom Dinis tornou-se um safado galhofeiro e, portanto, incapaz de fazer qualquer coisa que se aproveite porque, em contato com folhetos e romances de safadeza, contraiu três defeitos gravíssimos: o desvio heróico, o desvio obsceno e a galhofa demoníaca.
Uma dúvida atroz atormenta o poeta branco: como ser Fidalgo e Cruzado numa terra dessas, que nem ao menos possui um padroeiro belicoso ao qual invocar! Os Cruzados ingleses podem gritar por São Jorge, os espanhóis por São Tiago, os franceses por São Luís e nós temos que chamar por Nossa Senhora da Conceição! Mas -observa D. Dinis- Nossa Senhora da Conceição é boa para casos de guerra, pois na Batalha dos Guararapes a situação estava ruim para os Brasileiros e então ela apareceu e os holandeses perderam!
Dom Dinis possui elevada auto-estima porque, ao passo que o poeta branco é somente godo/ibérico e o filósofo é negro/tapuia, ele é:
árabe/godo/negro/judeu/malgaxe/suevo/berbere/fenício/latino/ibérico/cartaginês/troiano/cario/tapuia... 
Por causa das dificuldades que passou em sua atribulada existência, D. Dinis tem muito contato com o Povo, os Cangaceiros, os Vaqueiros, as Mulheres-Damas, os Cantadores e etc, enquanto o poeta e o filósofo, apesar de viverem falando e filosofando sobre o Povo, vivem fechados entre o mofo das suas respectivas casas e as teias-de-aranha da Biblioteca... por isso eram perdidos na grandeza de suas idéias e seus sonhos. Muito distraídos para as ciladas da vida prática, cada um era radical por um lado só. Juntando as opiniões azuis de um com as vermelhas do outro, D. Dinis poderia realizar a receita. Então, na tentativa de conciliar diferenças e manter a união, propõe ao poeta e ao filósofo que os três, juntos, fundem uma Academia com sessões de três tipos: 1) as de gabinete, destinadas a discutir Literatura fidalga, fechada, pura, individual, poética e sonhosa; 2) as a , onde, com os pés no chão, os três se libertariam do mofo da Literatura burguesa decadente, ligando-se à realidade, à análise e à crítica dos males sociais. Tudo isso a pé. Como o povo faminto das estradas... As sessões do tipo 3), a cavalo, seriam destinadas a discutir os amores, as cavalarias, os cangaços e as quengadas dos folhetos. 
D. Dinis pretende conciliar as viagens filosóficas de um com as demandas poéticas do outro, dando como resultado romances interessantes, com heroísmos, safadezas, batalhas, castelos amorosos e perigosos, amores legendários, gargalhadas, putarias e outras coisas divertidas e boas de ler. Se é para contar a história só com os sonhos do estilo rapão-ranhoso da Direita, ou somente com a exatidão mesquinha do estilo raso da Esquerda, não vai, de jeito nenhum! Eu só sei contar as coisas no meu estilo... dos Monarquistas da Esquerda! esclarece D. Dinis, a quem preocupa o fato de ainda existir na Vila de Estaca Zero um terceiro chefe extremista: O Comendador... arrendatário do Açougue Público, dono do moinho, da torrefação, da padaria e de quase todas as vendas. Raivosamente adversário da Direita e da Esquerda, O Comendador atua, extremadamente, pelo Centro...  opondo-se a qualquer medida.
Todos são unânimes contra os Burgueses: o filósofo, por serem brancos e ricos; o poeta, por não serem Fidalgos; e Dom Dinis, por nunca montarem a cavalo não andarem com bandeiras e, tampouco, se meterem em Cavalhadas, vaquejadas e outras cavalarias. Péssimos, como personagens de Epopéia!  Por esse motivo caem todos diante das astúcias e cortesias de um certo Doutor, homem gentil e cheio de habilidades no que se refere a astúcias, chaves e caminhos, ardis e defesas novas... Coisas de valor inestimável para a vida prática!
Ao final da narrativa, distribuindo cartas de nobreza e trazendo amarrada ao pescoço as cores do Papa e no indicador da mão direita uma pedra-de-grau de Licenciado em Direito, o Doutor assegura a Dom Dinis um título de nobreza e ao poeta um título de Comendador. O filósofo negro opta pelo título de Visconde... O poeta protesta alegando que o filósofo é negro e comunista, porém, temeroso de desmoralizar a Ordem que o haveria de agraciar, não se atreve mais a criticar coisa alguma. O poeta e o filósofo... lentos em todos os momentos da ação, eram rapidíssimos nas fugas, observa Dom Dinis, a partir da solidão do cárcere em que se encontra e de onde narra sua história.]

As últimas palavras d’O Romance da Pedra do Reino são, também, as últimas de D. Dinis, lembrando o momento em que solicitara uma pequena mudança nos versos da canção entoada pelo povo no momento de sua coroação:
... eu ordenara que pusessem o brasileiríssimo e sertanejo gavião tourano.... servia muito melhor de insígnia para minha realeza do que aquele bestíssimo gavião estrangeiro que é a águia. 
Na essência... era esse o enigma.

Tal enigma  será o assunto a seguir e a finalizar esta série de três ensaios.


[1]   ver Morais, Fernando Chatô - o rei do Brasil p. 492 e foto  p. 493 ed. Companhia Das Letras São Paulo,SP 1994

[2] Já em poder do muiraquitã e retornando às margens do rio Uraricoera, Macunaíma deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma.
Andrade, Mário 'Macunaíma' p. 140 31a. edição ed. Livraria Garnier Belo Horizonte, MG 2000

[3] N.A – De modo a tornar possível, de modo coerente, neste ensaio, um resumo compacto e parcial das 750 páginas de A Pedra do Reino... (5a edição José Olympio Editora Sp, SP 2004), somente alguns tempos verbais encontram-se alterados em relação à escrita, incomparável, de Ariano Suassuna, cujos termos originais e fluxo narrativo foram mantidos integralmente.

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